Escritos da série “Liturgias Dominicais: lembranças semi-inventadas”, parte de um projeto não publicado do autor chamado “Estômago”.
Henrique Grimaldi Figueredo
BIEDMA
[domingo #1: reencontro da dedicatória no livro do poeta catalão]
Pelo visto essa cidade nunca foi nossa
Pelo visto essa cama já não pertence
Nem a comunhão apócrifa
Sobre os cinzeiros abarrotados,
E as garrafas esvaziadas em tragos largos
Pelo visto nada fica
Tampouco a conversa rara
De homem para homem
Que surgia verdadeira
Seu buscador de orgasmos atira corpo sim corpo outro
E sem sentir
Não há mais os vinte anos
Pelo visto para aprender o amor
Importa estarmos sozinhos
Pelo visto o quarto escurece
Mesmo na insistência do sol de junho da Plaça Sant Josep Oriol
E na varanda o silêncio impera, a despeito da boca que diz.
E pelo visto não há nada tão doce como um quarto para dois,
Quando já não nos queremos demasiado
E concordamos ser verdadeira a obra de Gonzáles-Torres,
Só há mesmo perfect lovers no atraso do ponteiro
Pelo visto seguimos, e será piamente preciso
Não esquecermo-nos da lição:
Pelo visto importa estar vivo,
E que a vida é ainda possível, pelo visto.


TRANSA
[domingo #2 o que restou dos domingos em Portobello]
Contou-me que a volúpia ainda hoje
O aflige na primeira nota do disco
Compartilhado
O lado B tornou-se para o desvelo de outros corpos
E que guarda, inteiramente a mim, o lado A
Mas que até naquele outro, sou eu
Nine out of ten
DOMINGO É A GUERRA
[domingo #3]
a. Naquele ano custava ridiculamente pouco o amor; eram os museus gratuitos e os parques módicos até o metrô por vezes abolia a roleta e íamos na econômica. No gesto não se economizava. Foram três ou quatro ‘love of my life marry me’ e quinze pontes atravessadas de mãos dadas o que corrigia o fato de os verões serem excessivamente curtos. Custava pouco, indeed. Seis libras compravam o almoço e um tarde vermelha ao som de shiny, shiny, shiny boots of leather. Mas como todos os ativos capitalísticos esquecemo-nos das letras miúdas. Saía barato o amor, parecia. Ignorávamos ainda que cobrariam a longo prazo e a proventos altos – em favor deles – duas vidas completas, um oceano e domingos de hiperbólico silêncio.
b. Percebi,
embora tardiamente,
que nenhum homem retorna
de fato
e/ou
inteiro da guerra.
E na liquidez silente da dívida
escuta-se sempre a mosca que zune
– ou seja –
que insiste em estar viva.

Crédito da imagem de capa: Plaça Sant Josep Oriol. Barcelona, c. 1900 [Fotografia: Frederic Juandó Alegret]
Como citar esse texto: FIGUEREDO, Henrique Grimaldi (2020). “Libelo contra o vazio de domingo [ou] três escritos dominicais”. Panteão: Memorial da República Presidente Itamar Franco. [online]. Acesso em: [dia-mês-ano da consulta], n.p. Disponível em: [link do post]

Henrique Grimaldi Figueredo é Doutorando em Sociologia (IFCH/UNICAMP) e curador/designer exibitivo independente. Autor ocasional de textos poéticos, com destaque para Objetos Nômades II, na Revista Trama; Exegese da Letra A e Incendiar é preciso, ambos na Revista Subversa – Literatura Luso-Brasileira.