‘O desafio hoje é saber como conseguimos construir pontes entre pessoas que pensam diferente’, aponta Fernando Perlatto | 5ª Semana Nacional de Arquivos

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Conviver representa viver em proximidade. Contudo, em nossa dinâmica social, viver também representa estar em proximidade. “Nenhum homem é uma ilha”, escreveu o jacobista inglês John Donne. E salvo raras experiências, a vida se faz na partilha, parte dela no espaço público. Isso é política, termo que, portanto, prescinde do coletivo em sua potência.

Encerrando a programação do Memorial na 5ª Semana Nacional de Arquivos, promovida pelo Arquivo Nacional, o professor e pesquisador do departamento de história da UFJF Fernando Perlatto ministra o minicurso “Política, coletividades e arquivos”, na sexta, 11 de junho, às 14h. O evento tem transmissão aberta ao público e gratuita pelo canal do YouTube do Memorial.

Tema da exposição “Seres políticos, seres plurais”, que o Memorial inaugura este mês, a presença dos movimentos sociais no processo de redemocratização do Brasil é um exemplo expressivo da força da reunião entre política e coletividade. “É preciso que tenhamos instituições políticas que regulem e que permitam a existência dessa vida em comum”, observa o estudioso em entrevista ao Panteão.

Pesquisador do Laboratório de História Política e Social (LAHPS-UFJF) e pesquisador associado do Laboratório de História do Tempo Presente (LHTP-UFMG), Perlatto também reflete sobre a política nos dias que correm e como os arquivos podem ser mais inclusivos, contemplando narrativas de diferentes coletividades. Segundo ele, os arquivos que retiram do silenciamento histórias rejeitadas pelo discurso oficial, têm contribuído “de forma decisiva para influenciar as lutas políticas travadas no tempo presente em torno da democratização política e da inclusão social.”


De que maneira a política dialoga com a coletividade? De que forma um termo prescinde do outro?
A política tem sempre uma dimensão individual e coletiva. Em relação à primeira dimensão, é importante percebermos que as nossas vidas individuais, quer queiramos ou não, são atravessadas pela política: as formas como agimos cotidianamente, o que pensamos, o que falamos, o que compramos, o que comemos, tudo, de algum modo, tem a ver com decisões que não apenas são influenciadas pela política, mas também têm impactos políticos coletivos.
E a dimensão coletiva da política está vinculada justamente à percepção de que que nós, enquanto seres humanos, vivemos juntos com outras pessoas, dividimos os mesmos espaços com outros indivíduos, seja nossas ruas, bairros, cidades, estados, país e mundo. Nesse sentido, é preciso que tenhamos instituições políticas que regulem e que permitam a existência dessa vida em comum. Essas instituições políticas devem regular as divergências e os conflitos, ao mesmo tempo que possibilitam a construção de diálogos e consensos.

“Em relação à polarização política, ela está ligada tanto à crise política exacerbada nos últimos anos, quanto às mudanças estruturais na esfera pública que, sob a lógica das redes sociais, instigam muito mais as ofensas, as gritarias, as “lacrações” e as formações de “bolhas” do que o diálogo e um debate público mais racional”

Especialistas afirmam com frequência vivermos numa sociedade polarizada, partida. Nesse contexto, ainda é possível se falar em coletividade? Como avalia essa coletividade no presente?
Ao longo dos últimos anos, alguns processos sociais têm problematizado a ideia de coletividade, dentre os quais eu destacaria o avanço do individualismo e a crescente polarização política. O avanço do individualismo está associado tanto a transformações recentes mais estruturais do capitalismo – que, sob a lógica do neoliberalismo, enfraqueceram instituições coletivas como, por exemplo, os sindicatos e as associações de trabalhadores –, quanto a mudanças que ocorreram nas dinâmicas de sociabilidade influenciadas pela internet. Se, por um lado, as pessoas estão mais conectadas, de outro (mesmo antes de a pandemia começar), elas permanecem mais distantes umas das outras, estabelecendo relações mais virtuais do que pessoais. Em relação à polarização política, ela está ligada tanto à crise política exacerbada nos últimos anos, quanto às mudanças estruturais na esfera pública que, sob a lógica das redes sociais, instigam muito mais as ofensas, as gritarias, as “lacrações” e as formações de “bolhas” do que o diálogo e um debate público mais racional. O desafio que se coloca hoje é saber de que maneira, diante desse mundo individualizado e polarizado, conseguimos construir pontes e diálogos entre pessoas que pensam diferente. Não se trata de secundarizar a importância dos conflitos – que são inerentes a qualquer sociedade democrática – mas em pensar formas que permitam a construção de consensos e, consequentemente, a formação de projetos coletivos.

Protesto no Centro do Rio de Janeiro contra a Copa do Mundo e o aumento das passagens, em fevereiro de 2014. Foto: Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O que os arquivos brasileiros nos informam sobre o passado político que nos ajudaria a construir um presente mais pacífico e justo?
Ao longo dos últimos anos, muito estimulados pelas lutas de movimentos sociais e por transformações que ocorreram no âmbito do debate historiográfico – sobretudo impulsionados por movimentos como os Annales, na França, a micro-história, na Itália e a “história vista de baixo” na Inglaterra – temos visto diversas iniciativas voltadas para encontrar nos arquivos as histórias de sujeitos “subalternos” e excluídos, cujos passados muitas vezes permaneceram, se não silenciados, ao menos secundarizados. No caso do Brasil, por exemplo, isso possibilitou abrir novos caminhos para a compreensão dos trabalhadores – sejam eles escravos ou operários – a partir de novas perspectivas e novos olhares, pensando-os como sujeitos históricos efetivos. Mais recentemente, os historiadores têm buscado nos arquivos encontrar novas histórias de grupos que permaneceram excluídos em narrativas históricas canônicas, como mulheres, negros, indígenas e pessoas LGTS, ampliando sobremaneira o conhecimento sobre o passado. Os arquivos, nesse sentido, têm possibilitado olhar para o passado de forma mais democrática e inclusiva, contribuindo de forma decisiva para influenciar as lutas políticas travadas no tempo presente em torno da democratização política e da inclusão social. Apesar dos avanços, alguns desafios permanecem prementes: de um lado, a necessidade de assegurarmos a abertura dos arquivos – sobretudo de “passados sensíveis”, como o da ditadura. E, neste sentido, a Lei de Acesso à Informação tem cumprido um papel fundamental. De outro lado, é fundamental que ampliemos a própria noção de “arquivos”, pensando de que maneira outros artefatos – como livros, fotografias, quadros etc. – podem ser também vistos como “arquivos” importantes que nos permitam lançar olhares mais amplos e complexos sobre o passado.


Confira a programação do Memorial para a 5ª Semana Nacional de Arquivos

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