Itamar e o negro no Brasil de 1980: um discurso louvado

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Senador da República, Itamar Franco fez um histórico pronunciamento em 24 de março de 1980 sobre a situação do negro no Brasil, elogiado por lideranças e acadêmicos, num retrato de época ultrapassado em alguns pontos e atual em outros tantos

“A sociedade brasileira só será, realmente, aberta e, justa e equânime quando agregarmos todos os seus segmentos – como os negros – ao desenvolvimento da Nação”, clamou o então senador da República Itamar Franco em pronunciamento no plenário. Era dia 24 de março de 1980. Menos de dois anos antes, o país vira surgir o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, abreviado para Movimento Negro Unificado, o MNU, no ano seguinte. Entidades negras se multiplicavam por toda parte do Brasil, assim como protestos contra o racismo. Também ganhavam espaço denúncias de repressão contra organizações negras e de violência contra negros produzida pelo Estado. Era década de 1980 e o país ainda vivia sob o regime civil-militar, já bastante fragilizado.

Naquele 24 de março, Itamar discursa resgatando celebração ocorrida três dias antes, em 21 de março, dia internacional contra a discriminação racial. O texto do discurso foi publicado no dia seguinte, no Diário do Congresso Nacional. Junto de uma carta redigida em Uberaba durante o Congresso Afro-Brasileiro, ocorrido em setembro de 1979, e de carta produzida em Ribeirão Preto, em encontro de novembro daquele mesmo ano. Tempos depois de seu pronunciamento, chegariam a Itamar cartas de congratulação pelo discurso: uma escrita pelo deputado Carlos Santos, outra do professor de história Miguel Setembrino Emery de Carvalho, e uma terceira, do líder “de comunidade negra” Waldimiro de Souza.

Num volume de 27 páginas, o discurso, os dois documentos feitos pelo movimento negro e as três cartas em resposta ao pronunciamento foram editadas em livreto pelo Senado Federal, com o título “O negro no Brasil atual”. Há anos fora de circulação, a publicação é um retrato da época, um registro de como o debate vinha sendo travado no meio político e, principalmente, um testemunho da resistência da sociedade brasileira ao reconhecimento e à inclusão efetiva dos negros. “A escravidão negra – abjeta, aviltante e desumana – brutalizou o homem opressor e racista e animalizou o negro escravo, como se ele não tivesse sentimento, nem alma”, reconhece Itamar Franco, como a emular “Peles negras, máscaras brancas”, do martinicano Frantz Fanon, clássico do pensamento sobre a diáspora africana, publicado na França em 1952 e traduzido pela primeira vez no Brasil apenas em 2008.

Capa do livreto editado pelo Senado Federal com discurso de Itamar, cartas de resposta e documentos do movimento negro em 1980. (Foto: Reprodução)

Problemas: aspectos superados
Resgatando os movimentos de independência que, àquela época, dominavam diferentes países da África, Itamar Franco louva a eleição de Robert Mugabe em Rodésia-Zimbabwe. A mesma motivação, em defesa da independência de países africanos, fomentou a formação de organizações negras no Brasil, como o MNU. Havia aí uma consonância entre discurso e prática. O que se falava dentro do Senado refletia o que se vivia fora do Senado. Porém, como fenômeno próprio dos pronunciamentos em plenário, os muitos apartes que se enumeram durante a fala de Itamar contribuem para apontar certo distanciamento entre os pensamentos do meio político e das entidades representativas. Todos os seis apartes celebraram o tema em foco, reconheceram a urgência na superação do racismo, mas não o admitiram como eixo estrutural da sociedade brasileira. Pelo contrário, reconheceram a sociedade cordial ainda hoje defendida por alguns intelectuais. Os senadores afirmaram, ainda, defender uma maior participação política dos negros, gesto compartilhados por seus partidos, mas sem efetivamente propor mecanismos para tal.

Enquanto o senador Aloysio Chaves considera o discurso “necessário e conveniente para evitar que qualquer resquício de preconceito racial possa, sob forma, mesmo dissimulada, surgir neste País”, o senador Gabriel Hermes aponta para “a figura extraordinária do negro, este negro que nós nos acostumamos a amar, sobretudo, quando criança, quando eles ajudavam as nossas mães, nos dando carinho e muitas nos dando o leite, e quase sempre nos dando muito amor”. Em sua fala, Hermes evoca as amas de leite, geralmente mulheres negras, sem com isso nomeá-las ou sequer identificá-las no gênero feminino, já que o gesto ao qual faz referência, seria impossível vindo de um homem. Existe, portanto, uma segregação, que subentende lugares: nós e eles.

Em seu texto, Itamar Franco não reproduz tais distorções. Retoma o congresso de Uberaba e o encontro de Ribeirão Preto, bem como os festejos acerca dos 80 anos de Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala”. Defende, porém, uma miscigenação em convivência pacífica, o que nem mesmo os jornais da época registravam. Em tom enérgico, contudo, Itamar defende a relevância dos negros na construção da sociedade brasileira, cobrando do Estado e de seus governantes em empenho num debate que resultasse em verdadeira inclusão. “Discutirmos a situação do negro no âmago da coletividade. Verificarmos os erros, as omissões, os preconceitos que o têm levado à marginalidade social, econômica e cultural, desumana, sob prisma pessoal, e desagregadora da nacionalidade, ante os interesses coletivos maiores”, observa.

Pronunciamento feito em 24 de março de 1980 no Senado Federal foi publicado em livreto do mesmo ano, hoje fora de circulação, mas com exemplares na biblioteca de Itamar, que integra o acervo do Memorial. (Foto: Reprodução)

Reconhecimento do racismo para combate ao racismo
Diferentemente dos apartes no Senado, as cartas recebidas por Itamar Franco diante de seu pronunciamento apontam para uma urgência: o reconhecimento do racismo para seu enfrentamento. Jornalista, advogado e primeiro governador negro do Rio Grande do Sul, o então deputado Carlos Santos enfrenta a discussão pontuando a atualidade do preconceito, cujas raízes estão numa abolição incompleta. “O ‘Todos são iguais perante a lei’, que reluz no texto da nossa Carta Magna, não evitou, nem dispensou a Lei Afonso Arinos, de tão enervante ineficácia”, escreve.
Tomando a antropóloga norte-americana ngela Gilliam, o professor de história Miguel de Carvalho tece sua crítica ao capitalismo com seu papel de subalternizar pessoas, cindindo sociedades. Waldimiro de Souza, por sua vez, evoca a potência social dos negros, defendendo “uma estrutura sócio-político-econômica em que o homem possa realizar-se plenamente, sem perder as raízes históricas”. Esse, porém, não parecia ser o projeto de país em execução, já que a própria carta redigida em Ribeirão Preto, intitulada “O negro sob a visão política do estadista da República dos Palmares no Brasil de hoje”, denunciava o interesse do governo militar em excluir do formulário do IBGE a questão racial. No texto, valorizavam a memória e a organização em grupos como via para uma “libertação nacional”. O negro no Brasil de 1980, como registrou o então senador Itamar Franco em seu livreto, ainda clamava por liberdades, ainda que boa parte do meio político insistisse em não enxergar.

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