O retorno à memória herdada – Reflexões sobre a construção de identidades culturais

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O material a seguir integra a pesquisa para a composição da exposição virtual e imersiva "Tomar da carne verbo"

O surgimento da humanidade é um objeto de estudo com algumas questões não respondidas, ainda assim, as descobertas arqueológicas feitas no continente africano o apontam como o lugar de origem do processo de hominização. A adaptação e o desenvolvimento das primeiras civilizações, assim como seu desenvolvimento social e tecnológico, foram fundamentais para a evolução da espécie humana, e tiveram seu princípio em um território que séculos mais tarde teria seus descendentes privados de contar e guardar sua própria história.

O processo colonizatório, com seus desdobramentos e intenções, foi fundamentado em uma prática de esvaziamento da África em muitos âmbitos. Os países do continente europeu, armados de recursos bélicos e universalismo ideológico, esgotaram o continente africano de suas reservas naturais, suas propriedades e sua autonomia, silenciando suas tradições e seus saberes. A África guarda o passado de toda a humanidade, e à ela foi relegado o apagamento histórico e a desumanização de seus povos.

A experiência do quase

O continente tem sua história narrada por aqueles que o condicionaram à desumanização, seus símbolos e costumes foram contados por outros, e suas práticas foram esvaziadas de significado, usadas até mesmo como forma de justificativa para a discriminação e inferiorização racial. O filósofo e psiquiatra martinicano Frantz Fanon descreve seu livro “Pele negra, máscaras brancas” como um estudo clínico, no qual apresenta reflexões acerca das relações entre negros e brancos dentro da sociedade moderna, e suas implicações na formação de identidades negras.

No capítulo cinco intitulado “A experiência vivida do negro”, Fanon destaca a perda da metafísica do indivíduo negro, onde este se vê desprovido de humanidade e subjetividade, tendo em vista que seus elementos identitários foram abolidos por estarem em contradição com uma civilização que lhes foi imposta. A perda dessa subjetividade também está profundamente relacionada como a forma com que os corpos negros foram inseridos em um meio social que o tempo todo os repele.

Frantz Fanon, pensador martinicano, é norte no debate decolonial: “uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer”. (Foto: Divulgação)

Ao pensarmos na construção de identidade dos sujeitos negros modernos é possível que percebamos como ela é fundamentada na relação do individuo com o branco. O negro na sociedade moderna é uma figura que passou da condição não-humana para quase-humana. Ele passa a ser alguém com o potencial de ser quase tão civilizado quanto o branco, mas não igual. Esse sujeito passa a ser aceito, apesar de ser negro. Apesar!

Um exemplo do que vive esse corpo negro: é como se ele por anos a fio tentasse adentrar uma sala e, justamente quando as portas se abrem, ele passa a ser o único no recinto impedido de cometer sequer um erro de conduta ou de raciocínio, pois a condição para que ele permaneça e seja aceito, é ser um modelo exemplar de comportamento e inteligência. Só assim, encaixando-se em padrões, em regras sob as quais não arbitrou, é garantida sua permanência.

A minha consciência

Ao entedermos que a identidade se constrói de forma coletiva, como aponta a professora Nilma Lino Gomes no livro “Movimento negro educador”, compreendemos a importância da história ancestral, contada por fontes internas, assim como o resgate de tradições que foram deixadas como herança cultural. É fundamental para a afirmação de identidades, o reconhecimento e a valorização de memórias ancestrais. Tais elementos de construção identitária implicam diretamente na superação de pensamento infudamentados, como os estereótipos que ainda conformam o negro como um ser violento, exótico ou incapaz.

A memória carrega o potencial transformador da “consciência de mim mesmo”, e simboliza o retorno do indivíduo à ancestralidade, para que ele se compreenda, antes de compreender sua inserção num mundo dominado pelo outro. O povo negro hoje se espalha por muitas nações, e muitos dos descendentes do continente africano não têm conhecimento de qual cultura ou país vieram seus ancestrais. A afirmação de sua identidade cultural se inicia na busca pelos saberes produzidos, e nos fatos resgatados, capazes de elucidar ao indivíduo uma consciência cultural e política. Contudo, o conhecimento de um contexto histórico verdadeiro e comprovado é indispensável. Os fatos precisam ser apurados e comprovados para que não substituamos os mitos do senso comum por ilusionismos. O retorno à raiz do mundo é, ao mesmo tempo, simbólico e científico, para que não seja dado lugar à inconsistência e à alienação.

As ações afirmativas, o resgate das tradições e dos elementos culturais e das obras de arte, o estudo da história por perspectivas decoloniais comportam o mesmo caráter construtivo e libertário do pensamento colocado por Fanon: “uma vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer.”

Texto produzido por Laura Kasemiro, bolsista de Treinamento Profissional do Memorial da República Presidente Itamar Franco sob supervisão de Mauro Gabriel Morais, do setor de Educação e Cultura. Trabalho desenvolvido como atividade de pesquisa para a elaboração da exposição “Tomar da carne verbo”.


Referências
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas: 1. Ed. Salvador/BA: EDUFBA, 2008.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação: 1. Ed, Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2017.
KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África: 2. Ed. Brasília/GO: UNESCO,2010.

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