Os silenciamentos ocultos numa data

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Assim construímos a exposição “Tomar da carne verbo”: o dia 19 de abril e as urgências das lutas dos povos indígenas no Brasil atual

O que pode uma data? Como pode uma homenagem reforçar apagamentos? De que maneira celebrar pode ser também calar? O “Dia do Índio” foi instaurado a partir do Decreto-lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943, por Getúlio Vargas. A data foi criada para celebrar a luta dos povos originários desde a chegada dos portugueses. Contudo, ela carrega resquícios do imaginário colonialista. Já em seu título ocorre uma discriminação, visto que o termo no singular ignora a pluralidade étnica dos povos indígenas.  

O termo “índio” é usado de forma pejorativa para descrever as pessoas de etnias indígenas, reproduzindo preconceitos, como por exemplo, a ideia de que os povos originários são bárbaros, selvagens e desumanos. Tal palavra foi produzida pelos colonizadores portugueses, que acreditavam estar em terras indianas. Esses nativos, residentes muito anteriores à chegada do colonizador – o que por si só desconstrói o argumento do descobrimento -, enfrentam, séculos a fio, a deslegitimação e o apagamento de suas identidades, costumes e modos de vida. 

A premissa desse discurso que reduz a existência indígena está na ideia de que “índio” é aquele que anda de cocar, pinta o corpo e canta com as mãos batendo na boca, tal qual a imagem correntemente trabalhada em salas de aula. Na realidade, existem muitas vivências indígenas e não apenas essa, um tanto romântica. De acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, realizado em 2010, há aproximadamente 897 mil indígenas no Brasil. Esse contingente reúne 305 etnias e 274 línguas indígenas. Pessoas que possuem características, costumes e linguagens distintos.

Por volta de 1500, cerca de 5 milhões de indígenas habitavam o território brasileiro, de mais de mil etnias. Os portugueses contribuíram para que guerras, doenças e invasões levassem ao extermínio de grande parte dessa população. O aniquilamento também se deu pelas vias da subordinação e da escravização. O projeto de país trazido pelos colonizadores jamais incluiu os povos originários e sobrevive no imaginário de uma parcela da população ainda hoje.

Por uma leitura decolonial, por existência e resistência

Nas décadas de 1970 e 1980, durante a redemocratização no Brasil, movimentos sociais se articularam contrários ao regime ditatorial e também lutaram por pautas identitárias, como a defesa das causas indígenas, pela demarcação de terras e pelos direitos fundamentais dos povos originários. Naquele momento, foi fortalecido o debate acerca da urgência da reflexão sobre os subalternizados, numa crítica ao pensamento eurocentrado. Surge, então, a crítica decolonial, que propõe ouvir aqueles que durante anos, décadas e séculos foram silenciados. 

“A história do Brasil é contada sob uma perspectiva do colonizador, do vencedor. Dizem lá os contadores de história, não os historiadores, mas os contadores de história, que quem conta um conto, aumenta um ponto. E essa história contada por quem venceu, ou por quem colonizou, ou por quem se sentiu superior, sempre vai ser contada a partir da ótica de quem tem o poder na mão”, discute Daniel Munduruku, escritor e ativista indígena em entrevista para o Memorial Podcast, programa do Memorial da República Presidente Itamar Franco.

Para Munduruku, há grande urgência na afirmação desses povos que lutam diariamente pela sobrevivência. A luta, portanto, supera a data de 19 de abril. É maior, é diária e tem pressa. É pelas 1.100 etnias perseguidas e exterminadas, e pelas 305 etnias que resistiram. “O mundo todo vive com os olhos voltados para as questões minerais e isso aconteceu em várias partes do mundo, obviamente. A história de África é a história da exploração. E, na América Latina, não foi diferente. No Brasil, muito menos. Portanto, esses 305 povos que ainda fazem essa fronteira, são populações, o tempo inteiro, perseguidas. Os seus direitos sempre (foram) ameaçados. Porque se há direito para esses povos, há também aqueles que não o desejam, não o querem. E essa sociedade nossa, que é uma sociedade burguesa, uma sociedade colonizadora, tem feito de tudo para derrubar a importância que essas populações têm na manutenção das nossas riquezas ambientais, das nossas riquezas minerais, naquilo que, para nós, é, eu diria, o nosso cartão de visita para o mundo”, observa Munduruku, para em seguida concluir em tom de lamento: “quem mantém tudo isso, quem dá essa cara de ser um país ainda verde são as populações indígenas e, por isso, deveriam ser, obviamente, muito bem consideradas e respeitadas. Mas acabam sendo perseguidas.”

Texto produzido por Luana Dias, bolsista de Treinamento Profissional do Memorial da República Presidente Itamar Franco sob supervisão de Mauro Gabriel Morais, do setor de Cultura e Educação.

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