Memória, silêncios e insubordinação

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De que memória falamos quando falamos “memória” e como reescrever uma história que não nos contempla?

Escrevemos a memória ou nos conformamos a reproduzir a memória que escreveram para nós? Projeto Ka’adela propõe reflexão sobre monumentos e história que se deseja preservar. (Fotos Edgar Kanaykõ Xakriabá/Divulgação)

De que memória falamos quando falamos “memória”? Referimo-nos às lembranças individuais? Ou às histórias coletivas? Enquanto a memória individual é constituída de recordações particulares a cada sujeito, tendo como base suas próprias experiências, a memória coletiva, trabalha com a construção de uma narrativa que trata fatos sociais como coisas, reforça a hierarquia e classifica as lembranças.

Nossas memórias estão presas ao subconsciente e são acionadas a partir de gatilhos que podem ser qualquer instrumento real ou ficcional cuja forma se dá através de uma conversa, de um olhar, de um desejo ou de uma singular importância. Assim, podemos dizer que memória individual e memória coletiva estão intimamente ligadas, como assegura o sociólogo francês Maurice Halbawchs: “Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras, para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum.”

A memória, portanto, também é construída pela história oral, fonte interminável de lembranças diretamente ligadas às individualidades. E resiste num terreno em disputa, entre o que deve ser valorizado e o que deve ser silenciado ou apagado. Esse silêncio atua, por si só, pela manutenção de uma memória considerada como mais contundente, hierarquizada como sendo mais  representativa.

Projeto de Belo Horizonte resgata memória de Galdino, indígena morto cruelmente em Brasília, e questiona sacralização de Duque de Caxias.

O ‘cis-tema’ colonial

São as reivindicações da sociedade que definem novas rotas para essa constituição da memória coletiva. Em Belo Horizonte, capital mineira, o projeto Ka’adela, realizou em 2020 uma intervenção no monumento a Duque de Caxias, no boêmio bairro Santa Tereza. “Trouxemos a força da memória do guerreiro Galdino Pataxó que foi assassinado a sangue frio em Brasília enquanto lutava pelos direitos de seu povo. Destituímos, ainda que temporariamente, a memória de um genocida para trazer a tona e honrar a memória deste guerreiro”, conta a ativista e uma das artistas envolvidas na ação, Idylla Silmarovi.

Na sequência, o projeto também ocupou as praças do Papa, com sua cruz de madeira, e da Bandeira, com a bandeira nacional. “Símbolos que não nos representa e que carregam em si mesmos o sangue de tantos de nós”, aponta Idylla. O Ka’adela (“ka’a é uma palavra de origem do tronco tupi que pode significar mata, floresta, território”) reúne nove artistas e ativistas – Alexandre Hugo, Avelin Buniacá Kambiwá, David Maurity, Edgar Kanaykõ Xakriabá, Fredda Amorim, Idylla Silmarovi, Juão Nyn, Vina Amorim e Rafael Bacelar.

“A esse coletivo apelidamos carinhosamente de Coletivo Autônomo Temporário”, pontua Idylla, referindo-se ao termo “Zonas Autônomas Temporarias”, do artivista anarquista Hakim Bey. “Ka’adela é um trabalho que brota na cidade para questionar os diversos apagamentos que sofremos historicamente como povos indígenas, negros LGBTQIA+, discutindo, a partir dos monumentos coloniais da cidade de Belo Horizonte, a memória que nos é ensinada e destituindo o imaginário imposto pelo ‘cis-tema’ colonial a partir da nossa ‘onçada’, que é o modo como intitulamos o nosso fazer artístico em coletivo.”

Por outras histórias

Ka’adela, o projeto, alinha-se à perspectiva que utiliza o termo Abya Yala – na língua do povo Kuna, “Terra madura” – em contraponto ao termo América, considerado por alguns especialistas e intelectuais como uma conformação que atua pela manutenção do estado de coisas. Dessa forma, as intervenções artísticas se revoltam contra o que seria uma memoria obrigada (termo utilizado pelo filósofo francês Paul Ricouer), que reverencia colonizadores, genocidas, etnocidas, militares e outros opressores. Esses gestos de insubordinação contribuem, portanto, para uma leitura renovada da história, comprometida com a representatividade e contrária aos silenciamentos de anos, décadas e séculos.


Texto produzido por Olímpio Silva, bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Artística (Pibiart) na modalidade Mediação Artística, no Memorial da República Presidente Itamar Franco, sob supervisão de Mauro Gabriel Morais, do setor de Cultura e Educação.

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