A emancipação pelo autorretrato

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Como a representação de si se inscreve na história da arte e como pode significar liberdade

“O pessoal é político” é um importante argumento que demarcou os movimentos estudantis na segunda onda do feminismo no final dos anos 1960. Segundo essa perspectiva, o que nos atravessa no cotidiano e a forma como nos comportamos acaba por fomentar a mobilização coletiva e, por consequências, gerar mudanças. E nada mais pessoal do que a autoexpressão, que nas artes reflete-se na técnica do autorretrato. Representação de si, o autorretrato também pode ser uma estratégia de emancipação.

Autorretrato da pintora francesa do século XVIII Elisabeth-Louise Vigée Le Brun. (Reprodução)

Ao longo da história da arte são poucas as mulheres artistas que se tornaram referência em comparação aos artistas homens. Tal fato se deve a diferentes fatores. De acordo com Linda Nochlin, historiadora de arte norte-americana e feminista que publicou, em 1971, o artigo “Por que não houve grandes artistas mulheres?”, a educação acadêmica feminina foi prejudicada ao longo dos séculos.

As poucas mulheres que conseguiram realizar um estudo em artes eram proibidas de frequentar aulas com modelos nus, quando esse formato de ensino era a única possibilidade de se estudar a anatomia humana. Por conta disso, as mulheres artistas passaram a estudar a si mesmas, criando autorretratos e se aperfeiçoando na técnica da representação. Em muitos desses autorretratos vemos as artistas no ato da pintura, com cavaletes e pincéis. Assim, tornavam-se protagonistas da própria narrativa, declamando a liberdade.

Humor e crítica social: trabalhos da artista norte-americana Cundy Sherman. (Reprodução)

Eu e o mundo
“A consciência do mundo, que implica a consciência de mim no mundo, com ele e com os outros, que implica também a nossa capacidade de perceber o mundo”. A citação de Paulo Freire denota como a compreensão do mundo advém da compreensão de nós mesmos, indicando como a autorreflexão pode ser, também, emancipatória. A norte-americana Cindy Sherman é um exemplo contemporâneo dessa abordagem, atuando com fotografias de si mesma. Nas obras, a artista modifica a realidade, numa ficção em que cria diversas personagens com perucas, maquiagens e roupas para diferentes cenários.

Sherman reflete sobre o papel da mulher na sociedade e exercita a própria liberdade. Ela não fotografa como se registrasse a própria vida, mas cria narrativas, novas existências. Da mesma forma faz Ana Berenice, mas utilizando-se da técnica da colagem. Nos trabalhos que integram a exposição “Tantas Trajetórias”, em cartaz no Memorial da República Presidente Itamar Franco, a jovem artista reúne fragmentos de imagens outras e de fotografias suas, construindo um autorretrato em que não há a própria imagem apenas, para uma nova figura a partir da própria imagem.

Em “A casa em movimento somos nós”, Ana Berenice insere a frase que dá título ao trabalho fazendo referência, também, a si mesma num contexto de coletividade – ela está no “nós”. Para ela, a escrita é uma ferramenta de expressão, que a fortalece na mesma medida que a autorrepresentação. O autorretrato, portanto, é uma interface entre o interior e o que está da pele para fora.

Detalhe de obra da artista mineira Ana Berenice. (Fotos: Divulgação/Memorial)

O mundo e eu
Adauto Venturi traça sua história de busca por liberdade na série “Por meus olhos”, da qual três obras integram a exposição “Tantas Trajetórias”. “Sacrificando todos os valores, arrisquei minha própria liberdade, e hoje vejo que no fundo sabia que era esse sacrifício que abriria as portas de encontro com a magia da vida, com a descoberta do meu mito e com o verdadeiro sentido de liberdade. Em prol do meu autoconhecimento e da minha bem-aventurança. Por tudo isso tive de passar, para meu amadurecimento pessoal e para o da minha arte. Para o encontro comigo mesmo”, narra o autor das gravuras em metal, em texto que acompanha a série. Dos esboços na reclusão à impressão do metal em papel num ateliê de artes, passando pela inscrição nas chapas de cobre, Adauto traça um percurso no qual se refaz, se reconstrói. Daí a importância do autorretrato no caminho de luta por liberdade. Nesse contexto, conceber a si mesmo significa emancipar-se rumo a uma nova representação.

Trecho da série “Por meus olhos”, de Adauto Venturi, em exposição no Memorial.

Texto produzido por Juliana Barbosa, bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Artística (Pibiart) na modalidade Mediação Artística, no Memorial da República Presidente Itamar Franco, sob supervisão de Mauro Gabriel Morais, do setor de Cultura e Educação.

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