Empossado no dia 29 de dezembro de 1992, o Presidente Itamar Franco dirigiu-se à Nação, em cadeia de rádio e TV, no dia seguinte, 30 de dezembro, em gravação feita diretamente do Palácio do Planalto. Leia o pronunciamento na íntegra.

“Pode orgulhar-se a Nação capaz de dominar as suas mais graves crises políticas na ordem da Lei. Sábio é o povo que, na conquista e preservação de sua própria liberdade, expressa veemência no clamor das ruas e na serenidade de seus atos.
Soubemos caminhar estes meses difíceis, sem arranhar as nossas leis e sem violar aqueles princípios permanentes do Direito que, embora não escritos, constituem o fundamento das sociedades políticas.
Os dirigentes e o nosso povo agiram com a mansidão dos justos, com a paciência dos justos. Com a paciência dos justos, recuperaram os postulados éticos que cimentam e suportam a estrutura dos Estados. A Nação, na firmeza que conduziu estas horas, declarou haver chegado àquele ponto da sua maturidade histórica que não admite mais retrocessos.
Não há força que nos impeça cumprir o grande destino que foi o sonho e o sangue de nossos heróis e mártires.
O Brasil está pronto para ocupar o futuro. O que lhe cabe, agora, é crescer na prosperidade comum. É vencer as desigualdades internas. É conviver com os outros povos, dentro das novas e desafiadoras realidades, respeitando-os, como é de nossa índole, e fazendo-se respeitar, como é de sua dignidade. É preservar a esperança.
Senhoras e Senhores,
Moços e Moças,
O Congresso Nacional investiu-me, com a autoridade que lhe conferiu o povo brasileiro, na chefia do Estado e do Governo. Não há poder político legítimo que se eleve sobre os Parlamentos. Eles nasceram para dar às sociedades as leis e as normas, reunir as experiências ao calor da inteligência e da razão, a fim de garantir a continuidade da vida nacional, na paz e na justiça.
A essa prevalência me submeto, com a certeza de que muitos de nossos males decorrem dos abusos do Poder Executivo, comuns nos períodos de aparente normalidade republicana e exacerbados nos regimes autoritários.
Inclino-me, também, e com o mais profundo respeito, diante do Poder Judiciário. A ele, na interpretação das leis e, sobretudo, na responsabilidade de zelar pelo cumprimento da Constituição pelos outros dois Poderes, compete garantir, com a força da ética jurídica, a perenidade do estado de direito.
A Constituição da República, nos artigos que proclamam os nossos objetivos e os nossos princípios, encerra e resume a razão de ser do Estado Nacional. Essa razão é a de construir uma sociedade livre, justa e soberana; de garantir o desenvolvimento, de acabar com a pobreza, de eliminar as desigualdades entre os homens e entre as regiões do País, de promover o bem-estar de todos, sem preconceitos nem discriminações de qualquer natureza.
Nos dois anos em que estarei incumbido de chefiar o Poder Executivo, trabalharei dentro destes postulados constitucionais.
Disse, ao empossar os primeiros auxiliares do Governo, que, em meu entendimento, os Estados só existem para promover a justiça e a paz. Disse, ainda, que, em sociedades injustas, como a nossa, a única coisa que se distribui com equidade é o medo.
Não queiramos ocultar, com as ilusões enganosas, o medo que nos domina. Ninguém se sente em segurança, e os mais fracos, acuados também pelo desespero da miséria, sentem-se tentados a colocar-se sob a proteção de delinquentes que organizam simulacros de Estados, disseminando a violência sob o perverso pretexto de que substituem a justiça. É dever do Estado agir com todo o rigor para manter o monopólio da força, assegurar o cumprimento da Lei e eliminar esses focos de banditismo. Mas é também preciso reconhecer que eles não surgem do acaso, nem se alimentam apenas da criminalidade organizada. A criminalidade encontra os meios de sua realização porque o Estado se ausentou das regiões de pobreza.
Senhoras e Senhores,
Moços e Moças,
Não resolveremos a questão social no Brasil enquanto não formos capazes, todos nós, de olhar nos olhos de todos os brasileiros, crianças e velhos, das cidades e dos campos, e vê-los como vemos os nossos próprios filhos, os nossos próprios pais, os nossos próprios irmãos.
Não podemos ver os mais pobres com a comiseração que se endereça aos miseráveis, mas com o sentimento de que estamos diante de pessoas humanas iguais a nós, companheiras de nosso destino dentro destas mesmas paisagens, sob este mesmo céu, e nesta mesma história. A nossa sobrevivência como Nação depende da união de todos e do trabalho comum.
Falou-se muito em modernidade nestes meses, como se alguém, em sã consciência, pretendesse retornar ao passado, ou manter o País no atraso.
Nos quase três anos em que se proclamou a falsa modernidade como programa de Governo, o resultado representou alguns passos atrás na economia do País. As previsões estatísticas anunciam que o Produto Interno Bruto do Brasil será, amanhã, dia 31 de dezembro de 1992, três vírgula sete por cento menor do que o PlB que registrávamos em 31 de dezembro de 1989. Como nestes três anos a população aumentou, a redução per capita registrada é de quase dez por cento.
Em suma: o lema da modernidade, tão proclamada, empobreceu o País dez por cento em apenas trinta meses. Todos nós queremos modernizar o País e o modernizaremos, sem empobrecer a classe média e sem agravar o sacrifício dos trabalhadores.
A política de modernidade e de combate à inflação não pode ser fundada na manutenção de juros altos. A taxa real de juros, paga para refinanciar a dívida pública mobiliária federal, ou seja, para rolar os títulos em poder da rede bancária, era, até recentemente, de dois vírgula dois por cento ao mês, ou de quase trinta por cento ao ano.
Como é possível investir em atividades produtivas, quando o próprio Governo paga tão alto pelo dinheiro? E de onde poderá tirar o Governo recursos para remunerar com tais taxas os seus credores?
Trata-se, senhores, de uma ilusão, de um pesadelo, do qual devemos despertar, mas dele não despertaremos com choques. A experiência passada demonstra que as chamadas medidas de impacto podem mascarar a situação por algumas semanas ou meses, mas não tocam na estrutura da crise.
Nos meses de interinidade, vencendo resistências de toda ordem, conseguimos reduzir a taxa real de juros dessa parcela da dívida pública a um vírgula cinquenta e cinco por cento ao mês, ou seja, a cerca de vinte por cento ao ano. Essa redução é ainda insatisfatória. Iremos, mediante criteriosa política que combine todos os instrumentos de ação governamental, entre eles o ajuste fiscal, trazer as taxas ao campo do bom senso.
Entre as providências de ajuste, inclui-se rigorosa seleção dos gastos públicos. O Governo investirá obedecendo a critérios sociais e na infra-estrutura. Ao mesmo tempo,
está certo de que a recuperação da confiança da sociedade no Governo possibilitará as condições indispensáveis à retomada do desenvolvimento. Vejo, com estimuladora esperança, que contamos com empresários lúcidos. São os que consideram a empresa como instrumento do progresso social e não como mera fonte de lucro.
Há ainda, entre nós, praticantes de um capitalismo selvagem, anacrónico, depredador. São os apressados em reunir e dissipar fortunas. Observadores isentos têm afirmado que nenhum país do mundo privilegia tanto o capital como o nosso. Garantiremos a estabilidade das regras económicas e asseguramos que não serão tomadas decisões arbitrárias.
Estamos certos de que os agentes económicos e financeiros entenderão agora que a paz e a tranquilidade social são também de seu interesse permanente.
Cumpriremos os compromissos firmados com os nossos credores internacionais, de maneira a que o País normalize as suas relações financeiras com o mundo.
Reestruturaremos o Banco Central para que possa desempenhar adequadamente a sua tarefa na estabilização da moeda. As instituições financeiras do Governo Federal, entre elas o BNDES, retornarão aos seus objetivos, que são os de promover o desenvolvimento da sociedade brasileira como um todo.
Prosseguiremos, sem açodamento, mas sem pausas, o processo de privatização de empresas estatais, cujo controle não seja exigido pelas razões estratégicas. O que muda no processo é a sua orientação ética. Juristas e técnicos examinam o assunto, em busca de diretrizes que ampliem o processo de privatizações, mas evitem prejuízos à Nação.
Tampouco caímos na ilusão de que poderemos construir um País moderno levantando barreiras económicas e pretendendo um desenvolvimento autárquico. Os povos só progrediram participando do mercado mundial que houve em cada tempo. O Brasil nasceu voltado para o comércio externo, e foi o comércio externo que o ajudou no extraordinário desempenho nos cem anos anteriores a 1980, quando foi o País que mais cresceu economicamente no mundo, em termos relativos, à custa, infelizmente, de graves distorções na renda e na riqueza.
Abrir as fronteiras à competição internacional não significa renunciar à soberania. O princípio que orientará as relações com os outros povos deve ser o da estrita reciprocidade. O mundo, depois da guerra fria, se organiza em grandes blocos regionais, que prenunciam uma sociedade política universal. Estamos participando do MERCOSUL, e sentimos salutar desafio diante da integração continental.
Ao mesmo tempo em que avançamos na integração do Cone Sul, mantemos os nossos compromissos com o Pacto Amazônico. É o que nos determina a Constituição Federal em um dos seus dispositivos: «A República Federativa do Brasil buscará a integração económica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações».
A nossa participação na sociedade mundial prometida pelo novo milénio pressupõe a nossa própria integração. A associação com os países meridionais não será apenas a integração do Sul do País com o Sul do Continente, mas, sim, a integração do Brasil como um todo com seus vizinhos austrais.
Por isso mesmo não podemos ignorar as consequências sociais e políticas das nossas desigualdades económicas regionais.
Só há uma forma de a elas se contrapor e afastar a ameaça de dissídios divisionistas, alimentados, também, pelo corporativismo exagerado: ajustar, com urgência, novo pacto federativo. Situo-me entre os que esperam, da revisão constitucional de 1993, a atribuição de maiores poderes e de novas responsabilidades administrativas aos Municípios e Estados. Só assim libertaremos o Governo Federal para o cumprimento de seus deveres mais altos. Temos que descentralizar a administração pública, e isso requer grande coragem do Parlamento.
Senhoras e Senhores,
Não estamos sós no mundo, em nossas dificuldades e em nossas esperanças. Há uma crise do Estado, em todas as latitudes, com a perda dos valores tradicionais de referência, como os da família, das organizações religiosas, das ideologias. Além dessas perplexidades, o progresso industrial nos trouxe outras, como as de possíveis catástrofes ecológicas.
Diante desse quadro, e sem se afastar dos princípios cardeais de uma política externa que vem sendo a do País desde Rio Branco, o Brasil se esforça, nos organismos e nas conferências internacionais de que faz parte, para que a humanidade prossiga no caminho do desarmamento, participando do controle internacional das atividades nucleares e das tecnologias que possam ameaçar a paz mundial.
A revolução científico-tecnológica permitiu enorme alteração nas relações económicas, globalizou o processo produtivo e abriu novas perspectivas. Nesse quadro, meio ambiente e tecnologias adequadas se tornaram partes inseparáveis do processo de desenvolvimento sustentado, que permitirá maior bem-estar para o povo e racional utilização dos recursos naturais.
Tenho procurado, como a Nação pode testemunhar, resolver os problemas aparentemente simples, mas imensos na vida cotidiana dos brasileiros. Estamos tomando medidas para que os remédios e alimentos se tornem mais baratos. E esperamos fazê-lo com relação aos bens de consumo geral. Reduzimos as tarifas de energia elétrica para os pequenos consumidores e estudamos medidas análogas, no quadro de políticas sociais compensatórias. A saúde é um dos primeiros compromissos do Governo.
Sentimos, de forma particular, a situação dos idosos, que depois de decénios de árduo trabalho não encontram na longevidade sua recompensa, mas quase uma punição.
Apesar de todo o progresso industrial, é ainda nas atividades agropecuárias que repousam a segurança e a prosperidade das nações. Os alimentos constituem a mais importante reserva estratégica dos povos. A organização das atividades rurais, com a concessão de créditos e a assistência técnica, que permita uma rápida assimilação de novos processos de cultivo, será preocupação constante do nosso Governo. No particular assume posição de destaque a questão fundiária, a ser resolvida por reforma agrária adequada à realidade brasileira.
Combateremos, sem trégua, os sonegadores. Estamos convencidos de que o ajuste fiscal será capaz de fazer com que todos paguem: os cidadãos recolhendo os seus impostos e taxas de contribuição, e o Governo e a Previdência cumprindo todas as suas obrigações para com os credores e beneficiários.
Este será um Governo honrado e conta com a vigilância do povo na defesa da moralidade e contra a corrupção.
Senhoras e Senhores,
Moços e Moças,
O tempo nos pede vencer muitas coisas, e rapidamente.
Disse Ulysses Guimarães, ao abrir os trabalhos da Assembleia Constituinte, que a cidadania começa no alfabeto. No alfabeto começa também o homem económico. Há mais de trinta milhões de brasileiros, que constituem a metade da nossa população economicamente ativa, incapacitados para dominar as mais elementares técnicas de produção. Trazê-los para o mundo do trabalho pelo processo educativo é tarefa de longo prazo, mas deve começar a ser executada agora.
Dirijo-me, com particular atenção, às mulheres. Vejo, com orgulho, a sua crescente participação na vida brasileira. Tenho uma palavra para as nossas Forças Armadas que, com o seu renovado compromisso democrático e patriotismo, têm contribuído para a superação de nossas dificuldades. Sei dos imensos desafios que devem vencer, dada a precariedade de seus equipamentos, na guarda de nossas fronteiras terrestres, dos nossos céus e de nossas costas marítimas.
Convocarei, em breve, o Alto Comando das Forças Armadas, colegiado nunca antes reunido, para a definição da nossa política militar e de diretrizes para a solução de seus problemas.
Conto com a intelectualidade brasileira, que nos tem sabido apontar caminhos, nem sempre trilhados pelas elites políticas. A sua capacidade de análise e de crítica nos é indispensável neste momento de reerguimento do Estado, e de restauração de urna política cultural.
Igualmente indispensável é o trabalho de nossos pesquisadores e cientistas. Embora os tempos sejam curtos, é possível reduzir a distância que nos separa dos países mais avançados no domínio tecnológico, tendo em vista o acervo que acumulamos no campo da pesquisa. Além da pesquisa fundamental, tenho particular esperança no setor biológico, que nos pode dar, à vista da riqueza de nossa biodiversidade e dos trabalhos já realizados, forte presença mundial.
Coloco, nos moços e moças, toda a certeza no grande futuro do Brasil. Penso, sobretudo, nas crianças e jovens que vagam pelas ruas das grandes cidades. Trazê-las para a dignidade da vida é tarefa inseparável do nosso projeto de Nação. Tem sido inestimável o trabalho desenvolvido por confissões religiosas, a começar pela Igreja Católica, no papel que elas exercem na luta pela igualdade de direitos e oportunidades.
Quando falamos no conhecimento e na juventude, é natural que se associe a nossa preocupação o problema da educação. Sem que nos descuidemos dos aspectos materiais, como o dos prédios escolares, estamos empenhados em restaurar a dignidade tradicional dos mestres. Educar, conforme a própria etimologia, é conduzir, é mostrar os caminhos, é libertar a capacidade criadora para a plena realização humana. Os professores devem receber o nosso respeito. E este respeito não pode resumir-se na retórica do reconhecimento do Governo e da sociedade.
A História só põe à prova os povos fortes. Somos um povo forte, e venceremos esta quadra. Esta passagem do ano, data em que se renovam as esperanças individuais e coletivas, não será apenas uma marca no calendário, mas, desejamos, o início de um grande tempo para o Brasil.
Este tempo começa com medidas há muito aguardadas. O Governo convocará extraordinariamente o Congresso para, a partir de 11 de janeiro, apreciar, entre outros projetos essenciais neste momento, os que tratam do ajuste fiscal, dos portos, do reajuste dos servidores públicos, da concessão dos serviços públicos, das licitações e da regulamentação do plebiscito marcado para 21 de abril.
Mais adiante o Governo espera que o Congresso legisle sobre matérias igualmente relevantes como propriedade industrial, diretrizes e bases da educação nacional, reforma partidária e reforma agrária. Pretendo dizer à Nação que se encerrou, e esperamos, para sempre, a época de Chefes de Estado com poderes quase imperiais, para começar a era da responsabilidade dividida de fato, e não somente de direito, entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, na administração do País e no cumprimento de seu destino.
Os homens maiores são aqueles que, trazendo os olhos limpos, podem ver a grandeza no horizonte, não como miragem, e sim como projeto nutrido da esperança criadora. Graças a Deus não nos faltaram esses homens no passado, não nos faltam hoje, não nos faltarão no futuro. Com eles, e com constante patriotismo da nossa gente, faremos o grande amanhã para o qual nos destinou a Providência.
Muito obrigado.”

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